José Sanchis Sinisterra, um
grande dramaturgo espanhol que conseguiu sistematizar protocolos dramatúrgicos
para escrita e criação de cenas teatrais, meu mestre de dramaturgia alguns anos
atrás, falava que o teatro é matemático, assim como a música. No início eu
fiquei curioso com essa afirmação, como uma poética artística pode ser
matemática? Me perguntava, então comecei a levar a sério esses sistemas
dramatúrgicos que Sinisterra propunha para a escrita, leve-os diretamente no
corpo do ator-improvisador, chamei às condições da cena improvisada de
protocolos, tal e como ele chamava as estruturas da escrita, copiei algumas das
fórmulas que aprendi nas aulas com ele e fiz elas no palco, improvisando, então
descobri que o mestre estava certo, o teatro é matemático.
PELAS RAMAS - HISTÓRIAS DA FRACTÂVIA |
Mas não basta ter fórmulas na
arte, essas estruturas, somadas umas com outras, ou divididas ou multiplicadas,
nada seriam sem o impulso do desejo, sem um ator em acontecimento acreditando
no que faz, em como o faz. A matemática é somente o mapa do caminho, o
interessante é percorre-lo, chegar até algum lugar mesmo sem um destino final,
aliás, é melhor não ter um destino final e sim um aqui e um agora, pois nossos
personagens assim como a gente, vivem um presente misterioso, orgânico,
assustador, fruto do nosso passado, ninguém é agora sem ter sido antes e sem
querer ser depois, mas é justamente isso o que nos faz seres vivos. O homem é o
único ser vivo que sabe que vai morrer, é por isso que vamos ao teatro, como
diz o mestre argentino, o crítico Jorge Dubatti, ninguém vai ao teatro para ver
o ator nem o personagem, vamos ao teatro para ver os estados em que eles entram,
tanto ator quanto personagem. Por isso a importância do convívio teatral, da
relação entre palco e plateia, eles não estão divididos, fazem parte da mesma
fórmula matemática; segundo Dubatti não poderia existir teatro sem espectador,
a própria palavra teatro, que vem do grego Théatron,
significa literalmente o lugar de onde se mira. O espectador assiste à peça
para ver acontecer algo que ainda desconhece mantendo a distância oncológica, o
seja, tendo consciência de que isso que está prestes a ver é teatro e não
realidade, porque no palco as coisas não acontecem como na vida real.
Porém essa afirmação também não é
uma verdade absoluta, o debate está em aberto, um outro mestre chamado José
Sánchez, defensor da dramaturgia pos-dramática, me disse um dia quando eu
defendia a teoria de Dubatti - pense num
músico solzinho em casa tocando seu violão, ele está fazendo música? – Eu
respondi que sim, lógico que está fazendo música, e ele disse – então porque o
ator que está em acontecimento, interpretando, porém, sem um espectador
assistindo-o, não está fazendo teatro? – Literalmente fiquei sem palavras, até
agora penso nisso como uma variável certa da matemática teatral.
Não tem como ter verdades
absolutas na arte, porque ela é subjetiva, é uma poética da interpretação
humana, não dá para uma regra negar outra, o teatro é assim, rizomático, feito
de fórmulas matemáticas que não se amanham, e a improvisação que eu considero a
alma do teatro, não está longe de isso, ao contrário, essas fórmulas, dúvidas e
variáveis também pertencem a ela, e nos, improvisadores, temos o dever de
conhecer essa matemática mesmo que seja para nega-la logo, para tomar as nossas
próprias decisões e criar nossas peças e espetáculos a partir desses algoritmos
que nascem do trabalho e não da cópia do trabalho de outros.
Seguindo essa lógica matemática
de Sanchís Sinisterra, pensando o teatro de improvisação como um sistema
dramatúrgico em convívio, com ou sem plateia, comecei a descobrir que muitas
das ferramentas que trabalhamos nos treinamentos, aulas e ensaios podem se juntar
em pacotes de três conceitos que agrupados nos ajudam a entender melhor a
construção da história improvisada. Vale a pena aclarar que estes conceitos
estão ligados com as estruturas episódicas do teatro de improvisação, de
histórias com princípio, meio e fim, independentemente do formato ou poética,
embora se aproximem e sejam mais úteis nos chamados long form ou formatos
longos, já que pela sua duração eles permitem explorar a profundidade a
construção cénica dos personagens e das estruturas dramatúrgicas que esses
personagens criam na hora.
TRÊS ESPAÇOS
1.
Teatral
É o lugar onde estamos nos
apresentando, chame-se teatro, sala de aula, rua, casa, etc. ele é importante
porque é o espaço que compartilhamos com a plateia. O improvisador sabe que sua
relação com o público é vital para determinar o rumo da história, que o lugar
onde se apresenta determina o como se apresenta. A escolha da disposição do
público, que luz ou música tem ao ingresso e saída do teatro? Tem luz ou
música? Tem ingresso? Tem saída? Tem público? Isso tudo permeia a peça, por
isso é importante vivenciar o espaço teatral antes, durante e depois do
acontecimento.
É muito comum que a relação do
espaço teatral com o espaço cênico seja conectada por uma ponte: apresentador,
mestre de cerimônia, narrador, folhas e canetas, um personagem, etc. que vincula
à plateia com a realidade da cena, muitas vezes até criando o espaço cênico a
partir das sugestões que vem do espaço teatral.
2.
Cênico
Trata-se do lugar onde acontece a
cena, geralmente está no palco onde se cria a convenção do lugar da
improvisação. Um formato curto ou de jogos sempre tem vários espaços cênicos,
inclusive vários numa mesma improvisação, e muitas vezes, como disse antes, é a
própria plateia quem sugere esse espaço: cozinha, elevador, praia, sauna,
bosque, carro, etc. ele pode ser também um espaço não naturalista: a cabeça de
um careca, o coração, uma lata de atum, uma nave alienígena, etc. Os formatos
longos também moram no espaço cênico, frequentemente esse espaço já está
determinado pelo cenário, seja este verdadeiro ou imaginário.
O improvisador acostuma entrar no
espaço cênico de uma maneira literal e ilustrativa, por isso é importante
treinar para domina-lo, já que ele determina a plataforma da cena, é aí que
acontecem os fatos. O ator está obrigado
a acreditar nele, a viver o aqui e o agora nesse lugar, porque é ali que seu
personagem nasce e morre frente aos olhos da plateia, que no final tem só duas
opções: entender o espaço cênico, que é o que acontece normalmente; ou
vivencia-lo, que é o que deveria acontecer, que o público acredite nesse espaço
cênico tanto quanto o ator.
3.
Dramático
Quando falamos de drama parece
que estamos falando de telenovela, e mesmo que essa linguagem televisiva se
sirva dele como ferramenta, o conceito de drama está distante dessa outra
ficção que nada tem a ver com o teatro de improvisação.
Drama significa ação, e ação
refere ao ¨como¨ dentro da cena. O que acontece, por que acontece, para que
acontece, são perguntas que alimentam o espaço do drama. Chamamos então espaço
dramático a esse lugar interior dos personagens, ao acontecimento como tal, à
ação que movimenta os objetivos dentro da história.
Vou dar um exemplo para entender
melhor este espaço a partir dos outros dois: vamos supor que o espaço teatral é
o Teatro Nacional, ali a companhia apresenta uma peça de teatro de improvisação
onde o espaço cênico é o quarto de um hotel, nesse quarto um homem e uma mulher
chegam a passar a lua de mel, mas durante a história improvisada vemos que a
mulher tinha outras intenções e acaba matando o homem. Então o espaço dramático
foi o espaço da mentira, da estratégia e da morte. O espaço dramático tem a ver
com a situação dramática, a credibilidade que o ator-improvisador tem em
relação ao outro e à ação que determina a estrutura improvisada.
Eu particularmente sinto este
espaço como o mais afastado da linguagem da improvisação que conhecemos na
atualidade. A Impro por exemplo preocupa-se mais pelo espaço teatral que pelo
espaço dramático, parece que manter à plateia rindo é mais importante que
manter ao personagem vivenciando uma situação que pode gerar riso como
consequência e não como objetivo. Da mesma maneira acontece com o espaço
cênico, é muito comum ver ao improvisador justificando o lugar que lhe foi dado
para improvisar, incluso com uma enorme habilidade corporal e de mimica no caso
dos espaços imaginários, mas é difícil encontrar improvisadores que acreditam
nele, como o faz o ator que cria um personagem numa peça de teatro de texto, e
sei por experiência própria que é muito difícil, mas se fosse fácil não teria
graça.
Não se trata de um julgamento e
sim de um convite para que comecemos a nos perguntar pela ação como principal
ferramenta da nossa linguagem, pois a improvisação à que fazemos referência
ainda pertence à representação teatral, não é uma poética pos-dramática, ela
não destruiu a noção de drama, e mesmo nos poucos casos de transgressão
dramática dentro da improvisação teatral moderna, a ação como principal suporte
da cena sempre será o mais importante do nosso trabalho. Lembremos que são os
impulsos e os estados o que finalmente o espectador recebe ao sair do teatro,
seu espectro da lembrança mora na emoção e não na piada, mesmo nos formatos
curtos devemos acreditar no que estamos fazendo e conseguir entrar com corpo e
alma no espaço dramático da improvisação.
TRÊS CONFLITOS
1.
Comigo
mesmo
Os personagens se definem pelas
decisões que tomam, e sabemos bem que tomar uma decisão sempre gera um tipo de
conflito. Ninguém está completamente feliz consigo mesmo, dia traz dia
acordamos com vontade de mudar alguma coisa das nossas vidas, do mesmo jeito
acontece com nossos personagens, eles não são unilaterais, têm várias faces,
problemas e obscuridades ocultas.
Sabemos que nenhum personagem
deveria acabar igual a como começa, porém isso é muito complicado na
improvisação já que pela falta de texto não sabemos a ciência certa como é esse
trajeto nem que vamos ter que vivenciar para percorre-lo com credibilidade.
Os personagens devem seguir seu
próprio racionamento, a línea sincera dos seus pensamentos. Nos acostumamos à
regra de não falar ¨não¨ para manter a cena sem bloqueios, mas acontece que
muitas vezes esse ¨não¨ vem do personagem e não do ator. As decisões que meu
personagem toma devem estar atravessadas pela minha decisão como ator, diretor
e dramaturgo, mas no final das contas o importante é que seja meu personagem
quem diga a última palavra.
Aconselho sempre aos meus
estudantes que seus personagens, por pequenos que sejam, sempre estejam em
conflito consigo mesmo. Não obstante este tipo de conflito também pode ser o
foco dramatúrgico de uma cena improvisada. Se analisamos por exemplo Hamlet (de
William Shakespeare) podemos ver com claridade como a peça está atravessada por
um conflito de ele com ele, a dúvida e a decisão sempre estão presentes na
peça, ao ponto de ser reconhecido justamente pelo monólogo que delata esse
conflito individual: - Ser ou não ser, eis a questão – Pensemos então que uma
improvisação pode tranquilamente estar centrada na individualidade de um
personagem, e não por isso deixar de ser todo um mundo com paisagens, tramas e
histórias paralelas.
2.
Com
outro
Este é o tipo de conflito que fazemos
de forma natural. Um improvisador iniciante sempre recorre à discussão como principal
opção para propor ou contrapropor uma cena. É natural ver casais brigando,
competições esportivas ou brigas entre o patrão e o empregado; esses lugares
comuns vêm do que vemos dia a dia, a gente recebe informações de guerras e enfrentamentos
o tempo todo desde que somos crianças, é por isso que ao improvisar este tipo
de conflito é o vem primeiro nas nossas cabeças, daí a importância de nos
preparar para aprender a administrar as informações e lembranças que temos na
mente.
Uma das melhores maneiras de
crescer como improvisadores-dramaturgos é tirando durante um bom tempo este
conflito de eu com outro, especialmente ao início da nossa formação. Pelo fato
de ser uma cena improvisada a briga deixa ela desconfortável e sem muitas
saídas, nalguma hora alguém tem que ceder. Quando numa aula eu faço um stop
numa improvisação onde aparece uma discussão e falo para algum dos
improvisadores não seguir esse jogo, a história imediatamente cobra força,
escapa do naturalismo banal e começa um novo caminho certamente mais
interessante.
Embora este conflito também é
importante, se for o personagem quem entra nele, interpretado por um ator-improvisador
preparado e consciente, o caso é diferente. O improvisador profissional pode
nos expor um conflito que tem com outro como uma escolha certa dentro do espaço
dramático e não como uma opção comum do ator que ainda não sabe administrar
essa informação.
3.
Com o
entorno
As melhores cenas improvisadas
quase sempre estão atravessadas por este conflito. O mundo está em contra
nossa: ficamos trancados nalgum lugar, alguém que não vemos vem nos pegar,
perdemos as passagens e a viagem é hoje, apaguei sem querer o relatório que tinha
que entregar, meu cachorro sumiu, etc. São muitas as opções que podemos
encontrar quando estamos juntos numa situação onde as coisas nos desfavorecem.
Este conflito nos convida a
encontrar saídas que muitas vezes nos levam a lugares ainda mais conflitantes,
é como um labirinto de acontecimentos onde todos temos o mesmo objetivo.
Pensemos por exemplo uma cena
clássica de um casal que vai para uma festa, temos duas opções: o lugar comum, vê-los
brigando porque ela não gosta do jeito dele se vestir, ou ele bravo porque odeia
que ela demore tanto para se arrumar, uma situação clássica, todos já vimos ou
temos referência disso por algum motivo, sabemos que nalguma hora alguém vai
ter que ceder ou sobreaceitar, chegará um momento em que o desejo vai nos consumir,
queremos que algum dos dois reaja, tome uma decisão e saia daí, ou então que os
diálogos sejam profundos e cheios de descrições e evocações que nos levem a um
universo paralelo a través da narrativa, mesmo assim o perigo da discussão
apagar essa narrativa é alto. Também podemos optar pelo conflito que nos
concerne agora, o entorno contra o casal: em lugar de brigar eles se apoiam,
estão felizes pela festa, atrasados; até podem comentar o muito que ela demora
se arrumando ou o mal que ele se veste, mas não é o foco da nossa cena, em
lugar disso quando o casal vai sair de casa a porta não abre, as janelas também
não, parece que alguém trancou eles, mas não sabem quem nem por que. Os
improvisadores agora estão jogando no espaço dramático da incerteza e a
urgência, sem controle do que possa acontecer, no risco, brincando com uma
promessa que ninguém sabe como cumprir, mas que com certeza vamos cumprir
juntos, passo a passo, no abismo da improvisação que é onde melhor se cria.
O conflito do entorno é o melhor
jeito de se preparar dramaturgicamente para improvisar histórias, nas minhas
aulas sempre falo disso, os estudantes compreendem a praticidade que ele lhes
dá fazendo-o.
TRÊS ACONTECIMENTOS
1.
Fator
imprevisível ou acontecimento surpresa
Uma cena muda radicalmente com um
acontecimento, podemos ter uma ação contundente dentro da situação dramática,
mas se ela não transforma nada nem ninguém então não deixa de ser uma ação. O
acontecimento surge a partir dessa mudança, e um dos mais claros nesse aspecto
é o fator imprevisível, o acontecimento que ninguém espera: num trem onde vemos
um grupo de amigos viajando felizes, falando banalidades, esperando ansiosos
chegar no seu destino, de repente se escuta uma explosão, trata-se de um vagão
que foi detonado por terroristas, o ambiente muda radicalmente, o que antes era
felicidade agora é medo e confusão, alguém tem que tomar uma decisão, porque
depois do acontecimento vem a decisão, ela que nos diz o rumo da situação, é
diferente se esses amigos são os terroristas ou se são as vítimas, dessa
escolha depende o trajeto da improvisação.
O fator imprevisível deve
surpreender alguém, seja ator-improvisador, personagem ou plateia, ou todos ao
mesmo tempo, ele pode vir de um estímulo externo: som, luz, voz, etc. ou de um
impulso interno: algo que se encontra, algo que se perde, uma transgressão ou
mudança do corpo do personagem, a aparição de um objeto não esperado, etc.
2.
Ato
de fala ou acontecimento falado
O texto também é ação, uma frase
pode mudar profundamente uma cena, todo depende do que acontece depois, da
decisão do personagem frente a essa alocução. Socialmente um ato de fala é
aquele que significa algo dentro de um contexto antropológico comum, por
exemplo: quer se casar comigo?; você está com câncer; estou grávida; você
ganhou a loteria; eu te amo; etc. Estas frases na vida real sempre trazem uma
troca de estados, uma mudança de vida, um decline da situação. Do mesmo jeito
passa na cena improvisada, com a diferencia de que nela um o ato de fala pode
levar a situação para um lugar que não esperamos, ou pode ser construído a
partir de uma frase simples que socialmente, na nossa vida cotidiana, não tem o
peso que a cena propõe. Por exemplo: acabaram as laranjas; eu te espero; eu
gosto de pão; minha mãe se chama Marta; etc. Qualquer frase que seguida de uma
mudança causada por ela vira um acontecimento falado.
Geralmente depois de um ato de
fala vem um silêncio, ele que dá o peso à situação, dependendo do que se diz o
silêncio pode gerar humor ou ser constrangedor, em qualquer caso a línea
dramatúrgica da história vai virar da mesma maneira que o faria se fosse um
fator imprevisível, aliás o acontecimento falado também é imprevisível a
maioria das vezes, porém ele está sustentado no texto e pretende se converter
numa notícia, informação, resposta, pergunta ou comentário o suficientemente
relevante para transformar a história.
Pensemos nos amigos que estão no
trem, a mesma situação de antes. De repente alguém entra no vagão que eles
estão e grita: - Há uma bomba neste trem – A situação é parecida, de fato
poderá inclusive gerar a mesma situação depois, a diferencia é que neste caso o
acontecimento foi falado, não teve um vagão explodindo ainda, tal vez nem
exploda, mas o fato da informação já faz a situação declinar o suficiente
levando os personagens a tomar uma decisão e mudar radicalmente a história.
3.
Promessa
ou acontecimento planejado
Mesma situação, mesmo trem. Um
dos amigos se levanta e vai ao banheiro, vemos ele entrando misteriosamente e
trancando a porta, é nosso foco, saca uma bomba e ativa-a no vaso sanitário, programa-a
para detonar daqui a cinco minutos, sai do banheiro e volta ao seu grupo, em
aparência nada muda, mas nosso olhar já não é o mesmo, a tensão aparece como
protagonista do espaço dramático. A decisão, que vem sempre depois do
acontecimento, neste caso pertence aos atores-improvisadores; o como vão
resolver esse jogo através dos subtextos, ações e diálogos, os porquês e os
paraquês, convertessem em o principal objetivo dos dramaturgos-improvisadores.
O acontecimento planejado está
diretamente relacionado com a plateia como sujeito ativo da ação teatral, as
premissas e promessas que construímos na cena improvisada geram um
acontecimento na ironia dramática entre personagem e público: um segredo; uma
decisão não dita; uma ação não feita, mas pronta para sê-lo; um encontro
perigoso prestes a acontecer; uma trama compartilhada conosco como público,
etc.
Este tipo de acontecimento
chama-se de planejado porque a diferencia do ato de fala e o fator
imprevisível, sabemos que ele vai acontecer, mesmo que não aconteça, somente o
trajeto entre a promessa e o resultado já revela uma transformação radical da
estrutura dramática. Pensemos por exemplo em Esperando Godot (de Samuel Becket)
ali os personagens esperam o tempo todo alguém que nunca chega, mas a espera já
faz acontecer, é ela um importante foco da dramaturgia. Agora pensemos nas
múltiplas opções que temos dentro de uma improvisação para que um acontecimento
planejado entre como parte e promessa do personagem, da situação e por
consequência da estrutura dramática da história.
TRÊS STATUS
O status é a posição que um
sujeito assume frente a uma ação, uma situação, ou um outro sujeito. Em cena o
status constitui-se como um ponto vital para o desenvolvimento das
improvisações, todos os personagens por pequenos que sejam, tem um status
O mestre Keith Johnstone, a quem
atribuímos o nome de Impro à técnica que serve de base na improvisação moderna
como resultado e não como processo de criação, expõe no seu livro titulado com
o mesmo nome: Impro, Improvisação e Teatro, um capítulo completo sobre o
status, nos ensinando muito bem duas maneiras de aborda-lo: social ou
situacionalmente. Não obstante quando falamos de Teatro de Improvisação esses
dois caminhos precisam de um terceiro que insira ao ator no espaço dramático,
que motive o personagem e o convide a gerar conflito consigo mesmo, é assim
como vamos falar então também do status emocional.
1.
Status
Social
Antecedendo ao status social existe
o status antropológico que nos define desde um ponto zero como seres humanos no
planeta terra, considerando a geopolítica, a sociedade, a religião, o sexo e as
demais condições nas que cada um de nós nascemos. Condições que são
irrefutáveis no momento do parto, mas que podem mudar consideravelmente no
transcurso da vida. Quando nas minhas aulas começo expor o status como
ferramenta do ator-improvisador, muitas vezes faço o seguinte exercício: todo
mundo vai para uma línea no fundo da sala, como se fossem começar uma corrida,
somente dá um passo à frente quem tiver uma resposta afirmativa nalguma das
perguntas que vou formular. Quem é homem?
Quem é heterossexual? Quem é branco? Quem nasceu na Europa? Quem é batizado?
Quem ao nascer já tinha casa própria? Quem mora num país sem guerra? Quem tem
papai e mamai? Quem estudou em escola privada? Quem nasceu numa família com
carro? Quem já saiu do seu país? Quem fala inglês? etc. Depois de fazer
essas perguntas quem estiver mais à frente tem mais status social, porque
antropologicamente falando as condições em que nasceu fórum favoráveis. Não é
igual nascer na Colômbia que nascer na França, como também não é igual ser
filho de profissionais do que ser filho de trabalhadores sem escolaridade.
Essas incidências às quais fazemos parte como seres sociáveis neste planeta,
determinam nosso status social.
Também é importante entender que
nosso olhar frente a esse status não é vertical, não temos juízos de valor,
ninguém tem culpa de nascer numa família rica ou pobre, simplesmente é uma
condição social da qual fazemos parte. Nosso olhar é horizontal, reconhecemos a
diferencia como objeto de estúdio para a construção dos nossos personagens.
Tanto assim que as vezes no mesmo rumo do exercício anterior, peço para o grupo
voltar atrás e faço novamente o exercício mudando as perguntas e levando-os
para o estado do status emocional do qual falarei mais para frente.
É inevitável pertencer a um
determinado status social, ele se define pelo entorno: a profissão, o trabalho,
o dinheiro, o poder, as jerarquias, etc. Está ligado às mudanças da vida: ser
promovido, ser demitido, se casar, se separar, ter empregados, ser empregado,
ganhar, perder, mandar, obedecer, etc. Por isso é importante determinar o
status social dos nossos personagens, porque ele serve como plataforma para
conhecer o estado em que eles se relacionam com o mundo em sociedade, aspecto
importantíssimo para o improvisador que conhece seu personagem passo a passo ao
mesmo tempo que o constrói. Começar pela forma é um bom jeito de criar um
personagem, e o status social determina claramente essa forma em termos de
relação e vínculo com o outro.
Alguns exemplos de jogos de status
social que implicam duas pessoas numa mesma situação, porém cada uma num
extremo da gangorra: patrão e faxineira; rei e bufão; médico e paciente; mãe e
filho; ator e fã; motorista e passageiro; Deus e anjo; etc.
2.
Status
situacional
Entrar no palco com um status
social claro não indica que o personagem se mantenha sempre no mesmo estado em
referência aos outros e à situação. Tudo depende da ação em acontecimento. O
status situacional determina a cor da cena, seu movimento leva os personagens
de um lugar a outro gerando prazer e interesse na plateia. Nem sempre o
empregado tem menos status que o empregador, socialmente sim, mas podem existir
muitas situações nas que a inversão de status apareça, por exemplo numa
situação onde o empregador precise da ajuda do empregado, ou do seu conselho,
ou da sua verdade. Do mesmo jeito acontece com qualquer um.
Ter mais ou menos status social
não indica ter mais ou menos status situacional. Um exemplo: três empresários
de alto status social estão prestes a serem promovidos, porém eles sabem que
somente um deles terá o cargo. A discussão em que eles entram claramente os
levará a uma luta de quem tem mais status social e merece sentar no escritório
da gerencia, somente o mais capacitado poderá entrar. A briga começará por
descrever qual tem mais estúdios, ou domina mais línguas, ou tem facilidade de
se transportar, de mandar, de tomar decisões que impliquem demitir pessoal ou
até fazer escolhas que somente alguém preparado pode fazer, etc. no final quem
mais status social tiver entra, os outros dois ficam. A situação é simples, ela
está caminhando na mesma direção, tanto status social como situacional fazem o
mesmo trajeto.
Pensemos nesta outra situação, os
mesmos três atores agora são três mendigos que estão na rua na frente de uma
lanchonete, os três sabem que somente um deles será chamado para comer as
sobras de um lanche que alguém deixou cima da mesa, os outros dois terão que
ficar sem comer. Com certeza trata-se de uma briga de status situacional que
vai na direção oposta ao status social, o seja, será chamado a comer aquele que
estiver na pior das condições, merece mais o lanche o mendigo mais necessitado,
ao contrário da outra situação, embora a luta continue sendo por alcançar o
status social mais alto.
Uma das situações mais divertidas
é ver um personagem de status social alto num status situacional baixo, é por
isso que resulta engraçado ver aqueles vídeos de modelos de alta costura caindo
na passarela; ou ver uma meleca saindo do nariz do presidente da república num
ato público. Os personagens cómicos mais icónicos do cinema quase sempre entram
nesse jogo de status, por exemplo Charlot (Charles Chaplin) é um vagabundo que
se esforça por ter bons modais e a dignidade de um cavaleiro, um status social
baixo que quer ser alto, as situações em que ele entra fazem quase sempre dos personagens
burgueses: ricos, policiais, patrões, etc. sofrer as consequências das suas
travessuras, baixando o status situacional deles batendo nalgum lugar, correndo
detrás dele, caindo, etc. Do mesmo modo acontece com Mr. Bean, Cantinflas, Os
três Patetas, Chaves, Chapulín Colorado, e muitos outros mais que brincam nesse
balancim da gangorra que Jonhstone nos ensinou que sempre deve estar em
constante movimento de arriba para baixo. Nenhum personagem fica quieto num
único status situacional.
3.
Status
emocional
Se existe o espaço dramático, o
conflito interior e o esperpento do personagem, também existe um status que
valoriza esses estados. A emoção como motor da ação está atravessada por um
estado que difere da posição social ou da situação em que nos encontremos. Vamos
voltar para o exercício do status antropológico que falamos ao expor o status
social. O grupo em línea no fundo da sala, somente dá um passo à frente quem
tiver a resposta afirmativa a alguma das perguntas: Quem estuda ou trabalha no que sempre quis? Quem está felizmente
apaixonado? Quem anda de transporte público ou bicicleta por convicção e não
por obrigação? Quem é homossexual assumido? Quem mora num lugar gostoso? Etc. Quem
ficou mais na frente tem um status emocional, aqui e agora, mais alto. E é
importante fazer um foco nesse aqui e agora, pois o status emocional está
estreitamente ligado ao presente, eu não necessariamente sinto a mesma coisa
que senti ontem porque eu não sou o mesmo que era ontem.
A emoção que acompanha as minhas
decisões como dramaturgo-improvisador também são importantes, porem o status
emocional pertence aos sentimentos do meu personagem. Eu posso estar numa
situação de status social onde sou um vendedor numa entrevista de emprego,
estou precisando do trabalho, a situação está dada, é clara, mas no fundo eu
não quero mais trabalhar como vendedor, eu quero ser cantor. Durante a
entrevista a mulher que está me entrevistando se sente atraída por mim, o
status situacional dá uma virada, agora eu estou encima, tenho um status social
baixo, um status situacional alto e um status emocional incômodo.
Nem sempre a plateia percebe o
status emocional, muitas vezes ele pertence ao esperpento, fica como motivador
do improvisador e pensamento do personagem. Está relacionado com o desejo, com
a necessidade e o prazer. O status emocional depende do que está no interior,
vem de dentro e não de fora, porém pode ser revelado nalgum momento gerando
inclusive um acontecimento para a cena. Por exemplo, pensemos numa cena onde
duas mulheres estão esperando seu filho sair da escola, elas começam a falar
deles como qualquer mãe faria, começa uma luta de status social alto, quem
tiver o melhor filho está no topo. O tempo passa, era para as crianças ter
saído quarenta minutos atrás, ninguém abre a porta da escola ou atende o
telefone, a situação muda, agora temos duas mães desesperadas falando da
fragilidade dos seus filhos, do perigo que podem estar correndo lá dentro
trancados fazendo sei lá o que. O status emocional está sendo atravessado pelo
status social, embora tem muito mais foco, é isso o que nos interessa ver
agora. Na situação nenhuma das duas mães liga para a polícia, descobrimos que
ambas estão sendo procuradas pela lei, nova inversão de status, acabou a luta
entre elas, estão juntas, motivadas pelo status emocional, decididas a entrar
no lugar seguindo seus instintos de proteção. Derrubam a porta, uma delas até
tinha uma arma, aponta, dispara sem parar. Nesse momento chegam os ônibus da
escola do passeio que estavam fazendo com os estudantes, ambas mães esqueceram
desse passeio, os filhos descem, a polícia chega, eles vêm como suas mães são
levadas na viatura, estão felizes de ver as suas mães sendo levadas presas, sua
emoção está ligada à sua imaginação, minha mãe na cadeia é massa, pensa uma criança.
É uma cena completamente motivada pelo jogo de status emocional.
Não tem como desligar a emoção da
situação e da ação, isso quer dizer que o status emocional sempre está
relacionado com o status social e situacional.