Buscar este blog

sábado, 6 de abril de 2024

DRAMATURGIA COMPARTILHADA


Quando falamos de improvisação teatral, imediatamente surge um distanciamento da dramaturgia como um conceito que abrange apenas o texto escrito. Originalmente, a palavra dramaturgia estava ligada ao drama, remontando à Poética de Aristóteles. "... A ação é representada no drama pela fábula ou trama... uma tragédia não pode existir sem ação" (Aristóteles, trad. 1980). Mas hoje em dia os conceitos se transformaram; o teatro agora também questiona as verdades que regeram por séculos a noção aristotélica de fábula e ação, aquela que colocava o dramaturgo na criação solitária, separado da direção, da atuação e da relação direta com o público. A dramaturgia começou a ter múltiplas interpretações e formas de criação.

Desde a Commedia dell'arte, atrizes e atores podem ser seus próprios dramaturgos, criando textos e ações diretamente no palco e diante do público. Porém, o conceito que precede aqueles que decidimos dedicar nossas vidas à improvisação teatral, é o da Dramaturgia do Ator, que teve seu auge durante a Criação Coletiva no chamado Novo Teatro Latino-Americano, em meados do século passado, em diferentes países da América Latina. No entanto, segundo o diretor e dramaturgo colombiano Enrique Buenaventura, a Dramaturgia do Ator foi a base e a matriz de todo o teatro moderno no Ocidente, mantendo-se até o final do século XVII, como evidenciam alguns documentos do teatro isabelino, do teatro barroco espanhol e do teatro de Molière (Buenaventura, 1985, pág. 4). A chamada "tirania do texto" e do diretor veio depois e perdurou até o final do século XIX.

O que me seduz neste conceito, como Buenaventura diz, é a possibilidade de conhecer mais profundamente uma dramaturgia que queira se replanejar e se renovar, que não se restrinja apenas aos autores, mas também aos atores, que, afinal, são "o teatro" para as pessoas (Buenaventura, 1985).

Maria Fernanda Pinta observa no artigo "Dramaturgia do ator e técnicas de improvisação": "Chama-se dramaturgia do ator a esse teatro onde o culto criativo é o ator e onde os outros integrantes do processo criativo trabalham em outras dimensões de composição, contribuindo para construir uma partitura do espetáculo. Não é um problema fazer teatro com texto ou teatro sem texto, é necessário ver que tipo de utilização se faz do texto" (Pinta, 2005, pág. 3). A autora afirma que o ator pode usar, para a composição da obra, diversas técnicas de improvisação provenientes de tradições teatrais, desde a Commedia dell'arte até os Jogos de Improvisação e suas interseções com as regras do esporte (Pinta, 2005).

Por outro lado, Osvaldo Pelletieri afirma: "Escrever em um palco (…) arrasta todas as imposições da escrita. Nem a escrita dramática tradicional, nem essa escrita cênica do teatro de improvisação, supostamente mais espontânea, surgem do nada primordial" (Pellettieri, 2008, pág. 43). Ou seja, sempre há uma inspiração, um motivo, mas também muito provavelmente uma estrutura, formato, protocolo, etc., que fundamenta aquilo que acreditamos ser nascido do nada.

Uma das premissas da improvisação moderna que mais gosto diz que "quem improvisa não sabe o que vai acontecer, mas sabe muito bem o que está acontecendo". Quando uma pessoa se depara com uma cena improvisada, sente a necessidade de criar um bom texto, de proferir palavras de uma maneira não cotidiana, porque no teatro as coisas não acontecem como na vida real, e não apenas por meio das habilidades narrativas, mas através da linha de ações que desenvolve e que a levam a construir finalmente situações com as quais ela arma sua própria estrutura dramática. Para isso, é necessário ter ferramentas, conceitos e um treinamento constante.

Mas voltemos à Dramaturgia do Ator, um conceito absolutamente pertinente nos dias de hoje, porém cujo termo, na minha opinião, precisa ser revisado em relação à sua exclusão linguística das atrizes. Atrevo-me a alterar o conceito em sua forma, acrescentando conteúdo ao seu significado; chamo-o de Dramaturgia Compartilhada[1]. E é compartilhada porque pode surgir do desejo de uma pessoa, seja diretora, ator, improvisador, dramaturgo, etc. Mas cresce e ganha vida somente quando está em convívio com o público, quando, como diz o crítico argentino Jorge Dubatti, o acontecimento gera poesia diante dos olhos do observador. O teatro só existe se houver alguém com seu corpo presente, testemunhando como um acontecimento executado por outra pessoa, também presente em corpo, se desenrola (Dubatti, Notas de aula, 2011). Ou seja, o teatro vive apenas no momento em que a ação é compartilhada com o público.

Essa percepção de compartilhamento me é muito familiar ao pensar nas bases mais profundas da improvisação teatral. Não somos apenas atores e atrizes que criamos uma dramaturgia viva; ela nasce de nossos desejos e da cooperação de imagens que criam histórias que podem ser atravessadas pelo público, modificadas pela luz, pelo som, pelo espaço, etc. Uma história improvisada deve se completar na mente do das pessoas que estão na plateia, não importa se foi totalmente costurada por quem a interpreta; não há nada melhor do que uma história que deixa espaços, e eu, como espectador, me vejo tentado a preenchê-las à minha maneira.

A Dramaturgia Compartilhada habita na fronteira entre o acaso e a certeza, no limite entre a estrutura e o texto improvisado. A tarefa de uma dramaturgia improvisada não cabe a quem escreve, mas a quem atua, pois aqueles que interpretam, afinal, "são o teatro para o público" (1985), como Dubatti observa: o as pessoas não vão ao teatro para ver o autor ou conhecer o diretor, nem mesmo para ver o ator; na verdade, elas vão testemunhar a afetação e os estados nos quais atrizes e atores se envolvem através de seu personagem e a sofrer essa afetação em sua própria carne (Notas de aula, 2011).

Como dramaturgo de textos teatrais, muitas vezes escrevo minhas obras a partir dos desejos que compartilho com aqueles que planejam montá-las, e até mesmo modifico o texto durante o processo de encenação, de acordo com as necessidades ou inquietações do elenco, e nunca me sinto traído por eventuais desestruturações do texto. Pelo contrário, algumas de minhas peças têm cenas abertas e protocoladas, ou seja, com estruturas e dispositivos que indicam o caminho para entender o que vai acontecer, mas deixando em questão o como isso acontecerá. Para que o texto falado ou mesmo as ações em cena sejam improvisadas a partir de diferentes sugestões que podem vir do público. É por isso que sempre digo que, como ator-improvisador e dramaturgo, vivo na fronteira entre o improvisado e o escrito, onde quero criar peças de teatro que pareçam improvisadas por sua espontaneidade, ficcionalidade e risco, e improvisações que pareçam escritas, por sua rigorosidade, estrutura e poesia, características do teatro de texto. E a Dramaturgia Compartilhada insiste em determinar como esses textos são construídos, se esforça para descobrir até que ponto as e os intérpretes estamos preparados para assumir uma criação no abismo, levando em conta os diferentes níveis que redefinem o conceito de texto dramático, ou até mesmo questionando se realmente estamos construindo um texto dramático que gere uma poética clara dentro do drama.

O mestre e dramaturgo argentino Mauricio Kartun, reflete o seguinte de sua perspectiva como autor, reafirmando assim que improvisar é inerente à construção de qualquer tipo de dramaturgia: "O ato de escrever teatro não é outra coisa senão a improvisação imaginária de um mundo de fantasias dinâmicas que exploramos com todos os nossos sentidos. Uma peça escrita é simplesmente o registro dessas improvisações organizadas agora em um todo orgânico e belo" (Kartun, 2006, pág. 88).

Quando enfrentamos um personagem dentro de uma dramaturgia compartilhada, viva, em convívio, devemos sempre prestar atenção ao que acontece ao nosso redor para usá-lo a favor da história, assim como faz um autor (a), mas com a pressão de um resultado imediato e sem o tempo para escrever, apagar e reescrever o que consideramos necessário para a construção da narrativa. "O dramaturgo incipiente deve aprender a se surpreender com a descoberta de um novo espaço, personagem ou objeto - imaginário ou real - que some e modifique - com sua irrupção - ao todo escrito e ao porvir. Aceitar as circunstâncias do momento criativo com todas as forças do arrastar de seus ventos subjetivos e objetivos: desde o estado do tempo ao estado de ânimo" (Kartun, 2006, pág. 11). Aprender a se surpreender com o que se descobre em cena, estar sempre atento e alerta aos movimentos, aos objetos, ao ambiente e às outras pessoas são premissas inescapáveis da Dramaturgia Compartilhada e da improvisação teatral. Aceitar as propostas e os acontecimentos continuam sendo a base da Impro[2].

A Dramaturgia Compartilhada difere da Impro pelo objetivo ambicioso de se tornar uma obra teatral improvisada, com foco na ação dramática e nas múltiplas linguagens e poéticas teatrais, às vezes distantes ao jogo e aos formatos. Caracteriza-se pelo envolvimento verdadeiro de quem improvisa com seu personagem, quando está consciente de como o convívio com o público pode modificar à ação; quando sabe o que diz e faz, e especialmente quando sabe como diz e como faz; ou seja, quando reconhece que a ação dramática é o principal motor da improvisação. Assim, por exemplo, enquanto uma improvisação de formato curto procura a espontaneidade e a originalidade da história, uma cena improvisada de Dramaturgia Compartilhada concentra-se em como essa história está sendo contada, mesmo em momentos em que o público já a conhece. De fato, às vezes nem mesmo existe uma história, o que não significa que não haja uma dramaturgia; nesse caso específico, pode não se tratar de uma dramaturgia episódica, mas fragmentada ou deslocada, cujo propósito seja, por exemplo, gerar sensações, estados e percepções diferentes, tanto para quem assiste quanto para quem interpreta.

Estamos falando de um tipo de improvisação que busca cada vez mais se assemelhar ao teatro de texto, mas sem texto, onde quem improvisa entra em cena incorporando um personagem que desde o início quer mudar algo em sua própria existência, incomodado, com um objetivo diante de um conflito que pode estar relacionado consigo mesmo, com outros ou com o ambiente; com ferramentas que o ajudam a construir um mundo ficcional diferente, que foge do naturalismo e dos lugares-comuns em que muitas vezes nos instalamos confortavelmente.

As atrizes e os atores improvisadores podem aprofundar suas estruturas dramáticas além da espontaneidade, da agilidade mental, da escuta e da aceitação, como ferramentas básicas para improvisar uma cena; têm o poder de aprender a capacidade de escrever em conjunto com outras pessoas, de gerar mundos ficcionais em um espaço dramático independente do gênero, do formato ou da poética da peça improvisada. Esse tipo de trabalho genotextual[3] tem como base os conceitos e técnicas dos pioneiros da improvisação moderna, como Viola Spolin[4] e Keith Johnstone[5], mas devemos prestar atenção à sua inevitável traição quando a intenção de se tornar uma peça de teatro improvisada se fortalece e a Improvisação como técnica tende a perder o controle. É nesse ponto que devemos ter consciência de que nem tudo o que se improvisa no palco é Impro. A Impro é a base e o esqueleto de qualquer tipo de manifestação teatral improvisada no século XXI, mas quando falamos de Dramaturgia Compartilhada, estamos escapando descaradamente desses preceitos que alimentam os treinamentos da maioria dos espetáculos de improvisação que normalmente criamos a partir de formatos preestabelecidos.

A Dramaturgia Compartilhada não é nada além de um caminho a serviço do teatro de improvisação, no qual me vejo destinado a confiar em minha interpretação em palco, pois quando enfrento uma improvisação como um fim cênico, sinto a obrigação de criar uma boa dramaturgia tão dedicada e limpa quanto uma dramaturgia de autor (a), não apenas por meio das habilidades narrativas, mas também através da linha de ações que desenvolvo, que me levam a construir finalmente situações com as quais posso moldar minha própria estrutura dramática. Minha provocação é para que você, que também tem interesse no teatro de improvisação, descubra qual é sua dramaturgia, para que trabalhe mais em sua própria forma de atuar ou escrever (em textos ou ações), sem necessariamente se prender a um estilo ou formato de improvisação; para que entenda que a improvisação teatral pode ser lúdica, divertida e intensa, mas não é um jogo; é uma poética teatral que merece todo o nosso cuidado e dedicação.

BIBLIOGRAFÍA

Aristóteles. (1980). La Poética. De dominio público.

Buenaventura, E. (junio de 1985). www.teatrodelpueblo.org.ar. Recuperado el 19 de enero de 2011, de http://www.teatrodelpueblo.org.ar/dramaturgia/buenaventura001.htm

De Lima e Munis, M. (27 de Mayo de 2007). www.textosdematch.blogspot.com. Recuperado el 24 de Noviembre de 2010, de http://textosdematch.blogspot.com/2007/05/la-improvisacin-como-espectculo-breve.html

Dubatti, J. (2007). Filosofía del teatro I. Convivio, Experiencia, Subjetivodad. Buenos Aires: Atuel.

Dubatti, J. (2010). Filosofía del Teatro II. Cuerpo Poético y Función Ontológica. Buenos Aires: Atuel.

Dubatti, J. (febrero - marzo de 2011). Notas de clase. Seminario de Análisis de los Espectáculos. Medellín, Antioquia, Colombia.

Dubatti, J. (18 de febrero de 2011). Notas de clase. Teorías del Actor. Medellín, Antioquia, Colombia: Maestría en Dirección y Dramaturgia. Universidad de Antioquia.

Jaramillo, M. M. (2004). Teatro en Colombia ¿Qué papel le asigna al método de la creación colectiva en la historia del teatro colombiano? Revista de Estudios Sociales Número 17, 101 – 103.

Johnstone, K. (1990). Impro, Improvisación y el Teatro. Santiago de Chile: Cuatro Vientos.

Kartun, M. (2006). Escritos 1975 - 2005. Buenos Aires: Ediciones Colihue S.R.L.

Pellettieri, O. (2008). Perspectivas Teatrales (Vol. I). Buenos Aires, Argentina: Galerna

Pinta, M. F. (2005). Dramaturgia del actor y técnicas de improvisación. Escrituras teatrales. Telondefondo. revista de teoría y crítica teatral, 1-7.

Rehermann, C. (2009). henciclopedia.org.uy. Recuperado el 30 de Abril de 2012, de http://www.henciclopedia.org.uy/autores/Rehermann/Dramaturg.htm

 

 

 

 

 

 



[1] Esta tese foi defendida academicamente como parte da minha pesquisa de Mestrado em Dramaturgia e Direção realizada na Universidade de Antioquia em 2012 (Colômbia). O trabalho intitulado "Una Obra de Teatro - Dramaturgia Compartida" recebeu a Honra de Distinção Notável pelo júri da Faculdade de Artes da U de A.

[2] Impro é o termo utilizado para descrever um espetáculo teatral que consiste na criação de uma história, diálogo, cena ou conflito dramático a partir da resposta rápida a estímulos internos ou externos do ator, seja em relação a um objeto, ao ambiente, aos colegas de cena ou ao público (De Lima e Munis, 2007). Esse conceito está diretamente ligado ao trabalho de Keith Johnstone e Viola Spolin.

[3] O termo "genotexto" foi criado por Enrique Buenaventura, onde o conceito de dramaturgia não se limita apenas aos textos escritos: "... o genotexto de um texto escrito para o teatro é a prática teatral. Em certo sentido, a representação, na acepção mais ampla do termo, é anterior ao texto" (Buenaventura, 1985).

[4] Viola Spolin é considerada a mãe norte-americana do teatro de improvisação e influenciou a primeira geração de artistas da Improvisação no mundo moderno através de seu trabalho de preparação de atores no Second City. Spolin sistematizou vários jogos teatrais inspirada nos princípios defendidos por Brecht e Stanislavsky. Entre seus livros mais importantes estão "Improvisação para o Teatro" e "Jogos Teatrais, o Arquivo de Viola Spolin".

[5] Keith Johnstone é um professor e diretor inglês que revalorizou e sistematizou a improvisação como uma técnica e um gênero teatral no século XX. Ele escreveu o livro "Impro: Improvisação e Teatro", que se tornou o guia básico dos improvisadores no século XXI. Johnstone é o diretor da companhia Loose Moose, sediada em Calgary, Canadá.

 

1 comentario: